post da minha autoria retirado do blog da Associação de Estudandes do IGL
"Check", pensei, no final de mais uma ronda.
Subi ao meu quarto. O pessoal ja está todo a dormir. Lá em cima oiço barulho. Gritos. Jogos de pepe rápido que estão por terminar.
Amanha é mais uma audição. Sente-se o cheiro quente de Verão, dormimos com janelas abertas e estores corridos.
Sento-me. Os gritos continuam, soltam-se risos. Oh! Aquele é o da Laura, inconfundivel, como sempre. Vinha de fazer o Crisma. O riso parecia mais branco e puro que nunca!
Amanha é dia de Educação Vocal para mim. O cansaço ja pesa. Vou-me deitar com um suspiro profundo de quem passou um dia a trabalhar, e nao foi para a musica. Sinto falta, portanto.
Chiu. Alguem bateu à porta.
Espero.
Espero que alguem insista. É que nao me está a apetecer levantar, estou cansado.
"André", ouvi. "André, estás aí?", perguntava uma cabecinha que espreitava, a medo, para dentro do quarto.
Nao respondi. Desculpem o egoismo, surgiu do cansaço. De repente oiço..
.. um fungar de nariz..
.. e vejo a pessoa a levar as maos aos olhos e a soltar um soluço..
Levanto-me num àpice. Tronco nu, nao me queria vestir, fui directo à porta. Abri.
Timida, a criança levou as maos à cara e desatou a chorar. Reconheci.
"Joao, Joao, anda cá", disse. Baixei-me. Agarrou-se a mim e continuou a chorar que nem "uma Maria Madalena".
O Joao ainda é novo. Entrou este ano para o Gregoriano. Duvido que estivesse a chorar por saudades dos pais.
Acalmou-se. Limpou as lágrimas.
"Entao, agora queres contar o que se passa?"
Joao sentou-se. Queria contar mas tinha vergonha, eu notei.
"Vá, ja percebi. Envolve raparigas?"
Abanou a cabeça em sinal afirmativo.
"André... (Soluço)... Ela está a namorar com outro, nao gosta de mim", e dito isto, desata de novo a chorar.
Quis rir-me. Juro! Contive-me a tempo. E quando voltei a mim depois daquele momento, pensei na amargura, ainda criança, daquelas lágrimas. Lágrimas Gregorianas, de certo.
Levantei-me, deu-me a mao e seguiu-me. Ele vinha sempre a chorar. Fui ao quarto dele, vasculhei na secretária e encontrei as partituras dele. Peguei no violoncelo dele, e descemos até à sala de orgao.
Ele sentou-se, limpou as lágrimas e ficou a olhar para mim.
"Joao! Em vez de eu estar aquilo no bla bla bla e dizer-te que ela nao te merece (o que eu acho que é verdade!), vamos fazer algo.. Musica!"
Pausa. Olhar curioso.
"Musica, André? A esta hora? Nao consigo.. So penso nisto."
Nao liguei. Procuro alguma peça que ele esteja a tocar. Modo menor!
"Esta, pode ser? Sabes de cor?"
Olhou. A cara estava vermelha do choro, mas a musica nao chama horas, nem pessoas, nem idades, nem tempos..
Sentou-se, tirou o violoncelo. Apoiou o espigão. Deu umas arcadas. Afinámos.
Sentei-me ao orgao. Puxei os registos. Fiz uns acordes. Afinámos. Desta vez, sentimentos.
E antes de tocarmos, disse:
"Sente o quão triste estás. Agora toca a peça como se ela fosse um enorme desabafo a tudo aquilo que sentes."
Joao nao pestanejou. Foi forte. Pegou no arco. Respirei, comecei, ele entrou..
..Triste..
.. e triste continuava...
E dei por mim, as lágrimas corriam-me o rosto. Talvez de alegria por tanto talento, talvez pela tristeza dele me percorrer a alma.
Acabámos, e ficámos em silencio. Olhei para ele, e ao ver-me chorar, deixou escapar um ligeiro sorriso.
"Agora que me acabaste de fazer chorar, vamos a uma peça para nos alegrar?"
Sim, disse. Pegou rapidamente numa. Era aquela.
Tocámos. E o sentimento, ao mudar, mudava a sala. A cor. Nao ouvem? Cada nota pareciam 3. Cada 3 pareciam 1000.
Quando acabámos, arrumámos e subimos. Sao horas de deitar.
Em jeito de brincadeira, como costumo fazer, peguei nele estilo saco de batatas, e levei-o ao quarto. Ja soltava gargalhadas.
Pu-lo na cama. Lembrei-me do episodio das gemeas. Talvez agora nao fosse preciso, ele era mais velho.
Quando me levantei da cama, agarrou-me o braço e perguntou:
"André, se fosse contigo, que farias?".
Estremeci. Vacilei. Arrepiei-me.
"Nao sei. Mas fica combinado: se me acontecer, eu venho ter contigo!", e soltei um piscar-de-olho cumplice, próprio de nós dois.
A idade separa.
A música nao.
Há 9 anos
2 comentários:
Nem mais! Música seria, decerto, o ideal a fazer =P
Gostei das "Lágrimas Gregorianas" lol
beijinhos***
És profundamente belo meu irmão...
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