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Luis tinha acabado de fechar a porta do carro, e eu esperava que ele fosse para dentro do seu prédio, para poder ir embora. Tinhamos saido de mais um ensaio com os escuteiros, e eu tinha-o ficado de levar a Telheiras.
O que eu nao esperava era companhia na viagem de volta para casa. E assim, quando o Luis saiu do meu horizonte e eu me preparava para trancar as portas, alguem deita a mao à porta do lado do passageiro. Fico estarrecido. Tranquei rapidamente as portas, e continuei a olhar para o sujeito. Nao lhe via a cara, apenas o corpo. Nao era muito grande, nem muito forte, e estava vestido com roupas um bocado estranhas.
"Túnicas?!" - pensei. Era o que pareciam. Mas nao fazia muito sentido.
O sujeito la resolveu baixar-se e mostrar a sua cara. E...
"Ah! Ahahhahha!" - ri alto. Abri as portas do carro. Aquele sorriso que me olhava era inconfundivel. Deixei-O sentar-Se ao meu lado. Melhor dizendo, Ele deixou que eu O pudesse transportar naquela viagem. Sentou-Se, Olhou para mim e riu-se alto:
"Entao André? Mas querias que eu ficasse à chuva? Olha que estas roupas nunca foram as minhas predilectas para esta época!"Que Jesus tem uma maneira peculiar de fazer as coisas, eu ja sabia. Mas surpreende-me sempre. Liguei a musica, tinha levado um cd de Natal.
"Desculpa lá. Nao tens medo de vir comigo? Tu... deves ter outras maneiras mais... seguras." - respondi com um riso.
"Estou aqui porque gosto de fazer companhia. E a viagem ainda é um bocado, e dá para falarmos."Inversão de marcha, e arranquei. Estranhei a Sua presença, embora soubesse que precisava. A noite chuviscava, os carros eram poucos. Sinal vermelho. Aproveitando a paragem, olhei para Ele. Percebi que tinha de falar. E desta ver, fui eu que adivinhei as perguntas d'Ele. Hábitos.
"Está tudo bem. Um bocado cansado, as semanas tem sido a dar o litro, sempre. Com momentos de descanso para equilibrar."
Ouvi-O a rir-se.
"Se fosse só isso.. Vá, conta la. Sem medos. Sou eu, caramba!"Cocei a cabeça. Sinal verde. Avancei lentamente, a pressa de chegar a casa nao era muita.
"Faz-me confusão. Nao sei o quê, mas algo anda a fazer-me confusao...."Jesus inclinou-se para a frente, apoiou os cotovelos nas pernas, e a cabeça nas maos. Nao tinha cinto. Avisei-O. Ele olhou-me com um olhar quase irónico. Suspirou e disse:
"Percebo-te. Mas em verdade, em verdade te digo: louco é aquele que nao sonha." e endireitando-se, disse
: "Ja viste bem o sonho de meu Pai? Se alguem aqui tivesse esse sonho, chamar-lhe-iam louco. Achas que é?"
"Nao. Mas digamos que logo à partida é um bocado surreal."
Jesus fez um ar conclusivo. Como alguem que tinha acabado uma demonstração matemática muito complicada, ou tinha acabado de tocar algumas peças de Messiaen muito complicadas. Levantou a mao, e apontou. Apontou para a frente:
"Que te faz crer que naquele cruzamento aparecerá um carro vermelho, de matricula acabada em 08?"
"Nada", respondi. E realmente, porque haveria?
O meu carro avançava calmamente pela noite. E no cruzamento, um STOP obrigava-me a parar, e a abrir a boca em sinal de espanto: à minha frente passava um carro vermelho, de matricula acabada em 08.
"Falta-te fé. Falta-te sonhar."
E dito isto, abriu o porta luvas, tirou uma caneta e um papel, assinou uma receita, como se de um médico se tratasse.
"Quero que ponhas isto, algures no teu quarto." , e dito isto, entregou-me o papel. Dizia: "Fé, Sonho". Apenas duas palavras. A letra era parecida com a minha. Olhei mais atentamente. Era a minha! E olhei para o modo como Ele escrevia: esquerdino. Achei piada.
O carro continuou, estavamos a chegar perto.
As luzes começaram a apagar-se. Tinha os médios ligados, mas pareciam nao iluminar muito.
Estava a deixar de ver o caminho.
Olhei para Ele uma última vez, sem perceber o que se estava a passar.
"Sonha e tem Fé. O resto... eu trato."
E num sobressalto, acordei.
Será que Ele seria mesmo esquerdino?
Nao sei. Mas o papel... esse está lá no meu quarto.